30 abril 2010

Sem ódio, mas com nojo

Por Brizola Neto (deputado pelo PDT/RJ)



No dia 5 de outubro de 1988, ao discursar na promulgação da Constituição, o velho Ulysses Guimarães, que jamais foi um esquerdista, disse que tinha “ódio e nojo” da ditadura. Disse ele:
- Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações,  principalmente na América Latina.

Hoje, ao relatar a ação da OAB que apontava os crimes de tortura e assassinato políticos cometidos no regime autoritário como insuscetíveis de terem sido acolhidos pela nova ordem democrática que se consolidou naquela Carta, o Ministro Eros Grau apagou as palavras de Ulysses Guimarães.

A Constituição brasileira, para o ministro Grau, não tem ódio e nem sequer nojo da ditadura, das torturas e
mortes que, em nome do Estado, vitimaram brasileiros. E não se diga que elas foram praticadas em situação de guerra, porque fizeram tombar brasileiros que nunca puseram a mão em uma arma, mas que foram sequestrados, seviciados, assassinados e nem mesmo seus restos mortais têm direito a uma lápide onde seus filhos possam colocar uma flor, como  é o caso de Rubens Paiva.

Poderia não ter ódio, porque os homens podem ter a grandeza de não odiar, tantos anos depois. O ódio, tão velho, poderia nos fazer pequenos, mesquinhos e maus. Mas o conhecimento da verdade, a revelação daqueles episódios, a responsabilização – ainda que fosse mais moral do que penal – de seus autores, esta precisa existir, sob pena de que este país carregue, eternamente,  esta mancha moral em seu passado.

O voto do Ministro Eros Grau, porém, não padece pela falta do ódio a que Ullysses se referiu. O voto de Grau é pior, porque revoga o nojo à ditadura, à tortura, a violência covarde de quem tem todas as armas e poderes contra alguém amarrado, algemado, amordaçado. E este sentimento de nojo, ao contrário do de ódio, ao ser perdido, nos torna um espécie de cúmplices tardios daquela indignidade.

O pacto do esquecimento de uma anistia é político, não é moral. Não se quer levar os torturadores brasileiros ao mesmo que eles fizeram outros seres humanos passar. Nem mesmo é essencial que apodreçam os últimos anos de suas miseráveis vidas numa cela. Embora seja compreensível o sentimento de ódio de quem sofreu as mais bárbaras torturas, pode-se admitir que este seja um sentimento pessoal.

O nojo, não. O nojo, o asco, a repugnância, mais do que juríidicos – e por isso há o tipo penal de crimes
hediondos – são sentimentos éticos e morais de uma sociedade que possui valores. A lei que promove ou acoberta a indignidade profunda, a desumanidade, apenas por isso, é indigna.
Os argumentos trazidos ao Supremo pela Ordem dos Advogados do Brasil não são antijurídicos. Pediu-se ao Supremo – e a Eros Grau, o relator – que diante das controvérsias das leis decidisse de que lado estava o bom Direito.

Torturar e assassinar a sangue frio não podem ser bom Direito. Nem bom, nem Direito Sua Excelência pode ser um constitucionalista. Pode ter sido, ele mesmo, um preso e torturado pelo regime militar. E é muito bom que não lhe tenha ódio, com o que não poderia ser juiz. Mas é deplorável que não tenha nojo da tortura, da
covardia, do assassinato, porque sem esse nojo não se pode ser bom juiz. A falta de ódio poderia engrandece-lo; a falta de nojo o apequena.

Ainda restam juízes em Berlim, embora reste pouca esperança no país. O relatório e o voto de Eros Grau
relativizam os crimes hediondos da tortura e do assassinato covarde. De agora em diante, há o entendimento de que a lei – porque a a Lei da Anistia é considerada legítima para fazê-lo – pode fazer com que eles jamais sejam considerados uma abjeção.

Sobram argumentos técnicos para justificar suas capitulação moral aos que foram jovens sonhadores, lutadores, que descobriram na maturidade quanto o status-quo lhes pode ser confortável. Mas lhes falta a capacidade para entender as palavras do velho Ulysses, que se seguiram àquela frase e que reproduzo aqui:

A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos.(..) O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.

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