11 dezembro 2006

PARTICIPAÇÃO POPULAR: POVO ASSISTIU BESTIALIZADO?

"Eu quisera dar a esta data a denominação seguinte: 15 de novembro do primeiro ano da República; mas não posso, infelizmente, fazê-lo". "Por ora a cor do Governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula". "O povo assistiu bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada[1]". Aristides Lobo

Mas não é simples assim. Se por um lado as elites conspiraram – e conspiram – para mostrar uma face de pacifismo – ideologia surrada e ainda eficaz – por outro lado há elementos em nossa cultura que facilitam e contribuem para o resultado, para a perpetuação dessa enganação.

Vide no texto integral da carta de Aristides Lobo, afirmando categoricamente que, por ocasião da Proclamação da República em novembro de 1889, não houve manifestação popular e o povo não participou de nada, nem mesmo conhecia seu significado.

O depoimento de Aristides Lobo não revela o sub-texto, isto é: o que era esperado como participação popular?

Não há dúvida que entre dominados e dominantes há sempre um expectativa comum de participação: o modelito europeu de grandes manifestações populares, guerras intermináveis, sangue caído por todos os cantos e cabeças rolando.

Exagero no estilo violento?

Nada disto. Não esqueçam que nossos antepassados europeus – considerados hoje refinados - são os Bárbaros que ruíram o Império Romano, não menos bárbaro é claro, como os francos, os hunos, os povos godos (visigodos), os alanos, os Vikings, os anglos, saxões, os jutos, os vândalos e tantos outros “não-civilizados”.

De onde vieram as grandes marcas culturais do Brasil? A cultura indígena foi barbaramente destruída e o que sobrou não influenciou tanto assim, a cultura afro-descendente é subalterna ainda hoje. Não podemos perder de vista que nossa nação – ainda que muito distinta de sul ao norte, de leste á oeste; ainda que composta por mais de 27 povos e identidades distintas – é gerando em grande parte pela cultura dominante e predominante que é européia.

Comparado com o jeito europeu de ser dos séculos passados, nosso povo é, aparentemente, pacato. Digo aparentemente porque não há uma única forma de fazer crítica, de protestar, de participar ou de ser violento. Não somos iguais aos da Europa e nem somos iguais entre nós. Nunca fomos indiferentes a nada de ordem social ou política.

Mesmo quando os fatos eram pura encenação - das elites regionais - de mudança social que mudava para não mudar ou mesmo aos fatos que não representaram alterações significativas na vida da população, a repugnância se verificava com severas manifestações e protestos. Tudo do nosso jeito. Mas qual o jeito próprio de vivenciar os fatos?

José Murilo de Carvalho em seu livro[2] citando Aristides Lobo[3] conclui, por exemplo, que na Proclamação da República o povo não estava alheio ao fato, mas ao contrário, sabia que não era pra valer:

“Mais do que qualquer outra cidade brasileira, o Rio acumulou forças contraditórias da ordem e da desordem. [...] Embora criada com a finalidade de ser instrumento de colonização, centro de poder e de controle, a própria geografia já derrotava qualquer plano urbanístico que se lhe quisesse impor. [...] Daí que da parte do próprio poder e de seus representantes desenvolveram-se táticas de convivência com a desordem, ou com uma ordem distinta da prevista. A lei era desmoralizada de todos os lados, em todos os domínios. Essa duplicidade de mundos, mais aguda no Rio, talvez tenha contribuído para a mentalidade de irreverência, de deboche, de malícia, de tribofe.

[...] O povo sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação, a República não era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era que levasse a política a sério, era o que se prestasse à manipulação. Num sentido talvez ainda mais profundo que o dos anarquistas, a política era tribofe. Quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra[4]. (158-160)”

Fernando de Brito Alves conclui sobre a política, a partir do episódio da Proclamação da República:

“A política era, portanto, tribofe, ou seja, uma grande trapaça; e quem assistia a esse jogo nefasto impavidamente alheio era na verdade um "velhaco", um "espertalhão". Essa vinculação de política e sujeira, nascida muito provavelmente no contexto histórico acima, alcançou a contemporaneidade, de tal sorte que, ainda hoje, a cidadania ativa é vista com maus olhos, com se não fosse possível fazer "política limpa" e, a seu turno, a própria noção de política limpa nasce em oposição à crença cristalizada de que a política é intrinsecamente suja. Destarte, não se envolver nos processos de decisão pelo exercício de um múnus publicus de caráter eletivo, ainda é a regra em quase todos os rincões do país[5]”.

Numa terra assim, sem canais de Participação Popular, com uma política de controle absoluto do eleitorado onde a única possibilidade de manifestação política oficial – as eleições – eram seletivas e tuteladas, o deboche, a ironia, a malícia, o tribofe, a paródia, a sátira, a caricatura[6], a charge[7] eram – e ainda são – os meios de manifestação crítica, de participação incontrolável pelo poder do Estado.

Lembro muito bem das piadas da década de 60 e 70 do século passado. Meu irmão me contava muitas piadas que não passavam de sátiras envolvendo os militares e/ou Presidentes da República, na época, totalmente militarizada. Com o tempo as piadas, as mesmas piadas voltavam com outros personagens, outros nomes, mas sempre tudo igual. As piadas são, também, mecanismos de manifestações reprimidas, seja por uma história de colonizados contra colonizadores, pela ordem estatal no passado não muito distante, ou por um novo consenso de cultura política de reprimir as manifestações de incentivo ao machismo, às diferentes formas de preconceitos e à discriminação.

Assim se constituiu uma espécie de CARNAVALIZAÇÃO das manifestações críticas que se transformaram em marca do nosso jeito de ser político, de cidadania participativa. Se observarmos os programas de televisão, parte deles foi ou é centrado no deboche, na sátira dos mandatários, do cotidiano político do país. Na internet não é diferente, os sites de humor e os blogs são mecanismos de grande participação colocando por terra a dita indiferença do brasileiro, mostrando, inclusive, certa violência na escrita, principalmente na internet, quando não precisa assinar sua opinião.

Paralelo a esta participação carnavalizada, o Brasil chegou a ser palco de ações armadas, inclusive em nossa história recente com a Guerrilha no Araguaia das décadas 60 e 70 no século passado.

Logo, falar em participação no Brasil é expressar as múltiplas formas de rebeldia, de ação, do deboche ás armas, que os 500 anos de homem branco aqui já constituíram. Sua forma mais satírica ou mais bélica é contingência de inúmeros fatores, mas jamais apatia ou passividade.



[1] Está transcrito na biografia por A. de LYRA TAVARES. Aristides Lobo e a República. Rio de Janeiro: vol. 205 da Coleção Documentos Brasileiros, 1987, pp. 26 e 27. Vide tb. Os Bestializados de José Murilo de CARVALHO. Rio de Janeiro: das Letras, Companhia 1987.

[2] CARVALHO, JOSÉ MURILO. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. 3a. ed. 8a. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[3] Aristides Lobo era um propagandista da República que descreveu episódio da Proclamação da República em 15 de novembro de 1889.

[4] Substantivo que no masculino significa velhaco, patife, espertalhão; no Brasil é indivíduo conquistador; cliente de prostíbulos; em Florianópolis é pessoa interesseira, que chora para conseguir algo. Segundo. O bilontra da virada do século, o malandro que domina a cena carioca a partir dos anos 30 e o bandido que se consolida principalmente depois de 64 - que militarizou a sociedade - são, no fundo, o mesmo personagem. (Revolta da vacina, Ideologia da malandragem, O gênio da chanchada, Tom Jobim e os etnocêntricos e Zé Kéti foi à luta são os temas de um trabalho que analisa a mão pesada do Estado na fonte do conceito e das ações da marginalidade). Texto apresentado na cadeira de História da Cultura, do professor Arnaldo Contier, da USP.

[5] É professor de filosofia e sociologia, licenciado pela Universidade do Sagrado Coração de Bauru, bacharelando em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, em Jacarezinho (PR), membro do programa de pós-graduação latu sensu em História, historiografia, sociedade e cultura da Faculdade Estadual de Filosofia de Jacarezinho, ambas da Universidade Estadual do Paraná publicou “Cidadania e direitos políticos” em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7628 acessado em 09/12/2006.

[6] Caricatura é um desenho de um personagem da vida real, tal como políticos e artistas. Porém, a caricatura enfatiza e exagera as características da pessoa de uma forma humorística. Assim como em algumas circunstâncias a caricatura acentua gestos, vícios e hábitos particulares em cada indivíduo. Historicamente a palavra caricatura vem do italiano caricare (carregar). Carregar no sentido de exagerar, aumentar algo em proporção. A caricatura é a filha do expressionismo, onde o artista desvenda as impressões que a índole e a alma deixaram na face da pessoa. Trata-se de uma representação (geralmente de pessoas) em que são mostrados, de forma exagerada, aspectos do objeto retratado, normalmente na tentativa de se obter efeitos cômicos. É comum vermos caricaturas políticas em nossos jornais ou revistas. Entretanto, as sátiras sociais através de caricaturas já existiam principalmente a partir do Século 18, realizadas por artistas de renome.

[7] Charge é um estilo de ilustração que tem por finalidade satirizar, por meio de uma caricatura, algum acontecimento atual com uma ou mais personagens envolvidas. A palavra é de origem francesa e significa carga, ou seja, exagera traços do caráter de alguém ou de algo para torná-lo burlesco. Muito utilizadas em críticas políticas no Brasil. Mais do que um simples desenho, a charge é uma crítica político-social onde o artista expressa graficamente sua visão sobre determinadas situações cotidianas através do humor e da sátira. Por isso a charge, como desenho crítico, é temida pelos poderosos por seu importante papel social.

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