11 dezembro 2006

PARTICIPAÇÃO POPULAR: POVO PACÍFICO?

“Muitos dizem que nós, brasileiros, não entendemos de guerra. Que somos um povo pacífico, passivo, idiotas cordiais. Besteira grossa. Vá passar um final de semana na Rocinha, e vá ver se somos tão cordiais assim![1]Miguel do Rosário.

Durante décadas li, ouvi, absorvi falas indigestas de professores – não educadores - e políticos, dos mais velhos – menos de minha família que nunca acreditou nestas idiotices – afirmarem e defenderem a tese do “povo pacífico, passivo, ordeiro, cordial, festivo”, tudo dentro dos conformes, das regras e da ordem sem progresso. Numa destas idas e vindas da vida escolar, escutei uma “máxima da época” que dizia assim:

“Enquanto o baiano descansa, o mineiro conversa, o paulista trabalha, o carioca festeja, o gaúcho governa.”

Estereótipos à parte e preconceitos condenáveis, a tal “máxima” revela a tentativa de mostrar que tudo estava em seu lugar, funcionando como relógio parado “que está sempre certo, pelo menos duas vezes ao dia”.

Ilusão. Não, não era ilusão, ideologia bem construída para convencer pela repetição, pelas manchetes da televisão que tudo começava e terminava em festa. Havia – e de certa forma ainda há – uma conspiração (in)consciente, coletiva, ardilosa e bem estruturada para consolidar um ideário de passividade, de comportamento coletivo dócil e gentílico.

Fernando de Brito Alves[2] escreve que:

Há que se observar, preliminarmente, que a independência do Brasil foi relativamente pacífica, ao contrário da maioria dos países latino-americanos, onde houve grandes guerras de libertação, ou a mobilização de grandes exércitos promovidas por grandes líderes, ou ainda revolta libertadoras lideradas por populares. A independência do Brasil foi, na verdade, um grande acordo, mediado por D. Pedro, entre as elites nacionais e a coroa portuguesa.

O papel do povo não foi irrelevante, mas, certamente, diminuto, tanto na independência quanto na proclamação da república. O clima de estabilidade facilitou a transição, e o regime de governo implantado foi a monarquia constitucional e representativa ao modo europeu, se bem que além dos poderes tradicionais, manteve resquícios do absolutismo com a criação do quarto poder (o Moderador). A independência foi, ao mesmo tempo, liberal e conservadora: representou um avanço com relação aos direitos políticos, já que, no período anterior, os nacionais não tinham o mesmo acesso à corte que os reinóis e manteve a escravidão, não provocando qualquer mudança com relação aos direitos civis.

O problema é que eu olhava para os lados e não conseguia ver assim. Menino e adolescente, intuitivo e sempre alertado no lar por uma família crítica – brizolistas, anti-militares, com um irmão comunista – logo, curioso por natureza, procurava algo nos livros de história que contrariasse aquela passividade que me dava idéia de que a felicidade era baixar a cabeça e obedecer, como soldado respeitando a velha hierarquia militar da ditadura.

Evidente que problemas eu tive, folhava livros didáticos de história – ainda bem censurados – e via que contradição havia. Insurreições, esquartejamentos por todos os cantos, Revoltas aqui, revoluções populares ou elitistas ali, manifestações duras de ricos ou pobres, negros fugindo da escravidão, índios em guerras, guerras e protestos, greves enormes, manifestações gigantes... Comecei a acreditar que de outro país se falava ou que no Brasil não morava.

Li, reli, e nada. Via um outro país chamado Brasil de brasileiros que lutaram, reclamaram, protestaram, revolucionaram, reformaram, inovaram, brigaram, morreram por morte morrida e mais por morte matada, torturados, esquartejados, linchados, esquecidos, ignorados, relegados. De todas as classes e bandeiras, do norte e do sul, do leste e do oeste, com sotaque português, indígena, espanhol, italiano, holandês, francês, polaco, alemão; com jeito sulista de ser ou do jeito nordestino de viver, mas todos pelejando por um ideal ou por alguém, sem descansar e nem desistir.

No Brasil Colônia, no Império, na República e até hoje não consegui perceber nenhum traço de domesticação, a história – que muitos não querem ver contata nem mesmo em verso – revela lutas de todas as camadas sociais, tudo a história já provou. – Clique aqui para ler linha do tempo da história do Brasil de rebeliões, lutas, revoltas, protestos e etc.

Segundo Sheikh Muhammad Ragip al-Jerrahi, a resistência não era mera reclamação:

“Os documentos mostram que a fuga e os quilombos não eram as únicas formas de resistência dos negros perante a escravidão: rebeliões, assassinatos, suicídios, revoltas organizadas também fizeram parte da história da escravidão no Brasil. Das revoltas históricas, a mais conhecida foi a dos Malês, em Salvador. Essa revolta foi tão significativa que na correspondência de pessoas importantes da Corte, no século XIX, constantes do acervo da Biblioteca Nacional, há diversas menções a ela. Havia o medo de que novas revoltas como aquela transformassem o Brasil numa "anarquia." Os Malês, como se sabe eram um grupo étnico numeroso, já islamizado, que tinha capacidade de se organizar até mesmo nas senzalas.

O início do século XIX foi marcado por uma seqüência de revoltas denunciando a tensão crescente e o inconformismo com a situação de escravidão. As principais manifestações deste tempo ocorreram em maio de 1807; 4 de janeiro de 1809; fevereiro de 1810; fevereiro de 1814; janeiro e fevereiro de 1816; junho e julho de 1822; agosto e dezembro de 1826, abril de 1827; março de 1828; abril de 1830. A partir da revolta dos malês a religião islâmica passou a sofrer uma severa repressão. Foi taxada como religião selvagem que incitava a revolta nos negros escravos, então considerados seres sem alma humana. Para a mentalidade da época, não havia que se pensar, para seres sem alma, em direito à liberdade, à justiça, à vida, à religião ou à dignidade. Até que “em 25 de janeiro de 1835 estoura uma revolta de grandes proporções que passou a ser conhecida na história como "Guerra dos Malês". Os revoltosos percorreram as ruas da capital da Bahia, atacaram o palácio do Presidente da província, invadiram quartéis, enfrentaram tropas e fragatas de guerra ancoradas no porto. Foram totalmente subjugados pelas forças do governo. Após 1835, muitos muçulmanos foram julgados em tribunais especiais, alguns condenados à morte. Muitos foram deportados para a África como forma de reduzir sua influência entre os negros escravizados. Os que escaparam à morte ou deportação foram forçados, para sobreviver, a manterem-se na clandestinidade”.

No Rio Grande do Sul, exatamente no mesmo ano, por razões diversas e sob o comando das elites dos pampas, produziu uma revolta que não foi menos sangrenta e resultou na independência da região, chamada de República Riograndense que por dez anos foi um país à parte.

Como nos fala Miguel do Rosário:

“Mas, à exceção da Guerra do Paraguai, os nossos maiores feitos em armas não foram guerras entre estados, mas sim guerra das elites nacionais contra seu próprio povo, como foi o caso de Quilombo dos Palmares, que resistiu por anos ao exército nacional; Canudos, onde os jagunços de Antônio Conselheiro venceram três grandes expedições militares e quase venceram a quarta; o cangaço, sobretudo com Lampião; e os milhares de quilombos que lutaram contra soldados ao longo de todo o período escravista”.

Então percebi que nada disso passava de tribofe[3] da elite que por séculos adormeceu a consciência de muitos, mas não conseguiu acobertar a história de tatos bravos deste país ou destes países chamado Brasil.



[1] É professor de filosofia e sociologia, licenciado pela Universidade do Sagrado Coração de Bauru, bacharelando em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, em Jacarezinho (PR), membro do programa de pós-graduação latu sensu em História, historiografia, sociedade e cultura da Faculdade Estadual de Filosofia de Jacarezinho, ambas da Universidade Estadual do Paraná publicou “Cidadania e direitos políticos” em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7628 acessado em 09/12/2006.

[2]Publicado em Novae Editora, acessado em 09/12/2006. Miguel do Rosário é colaborador da Novae e editor de Arte e Política.

[3] Tribofe – substantivo, gíria da época (1891) significando conchavo fraudulento em corrida de cavalos; conchavo doloso entre jogadores nas corridas de cavalos; trapaça em qualquer jogo; esperteza no jogo; ladroagem; patifaria; namoro pouco sério.

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