30 novembro 2006

DESENVOLVIMENTO FESTIVO

(O texto que segue é de autoria de Gustavo H. Franco, presidente do Banco Central no governo FHC, foi inicialmente publicado no "Estadão" e Jornal do Brasil em 14/04/2000, ainda sobre o efeito da crise financeira da Ásia e da Rússia. Este é o segundo texto de uma série de artigos buscam trazer alguns apontamentos quanto a discussão econômica envolvendo os assim chamados: desenvolvimentistas. Guardadas as devidas proporções quanto aos artifícios de retórica e preconceitos do autor, este texto é interessante por demonstrar dois fortes estigmas relacionados aos, assim chamados, "denvolvimentistas": a) a irresponsabilidade, e falta de apego, ao equilíbrio fiscal e b) a excessiva discrionaridade na condução da política econômica que leva a ser vítima de grupos de interesse. Os grifos do textos são meus)


O reformismo brasileiro, durante muitos anos, foi mais etílico do que efetivo. A expressão "esquerda festiva" parece encontrar sua origem em senhoras e senhores de grande imaginação, pouca tolerância para a política do mundo real e excelente conversa.
O tempo e a Queda do Muro, todavia, terminaram produzindo um abrasivo divórcio entre aesquerda e o reformismo. Basta lembrar das inovações introduzidas, por exemplo, pelo governo Tony Blair: o uso "social" das receitas de loterias e a independência do banco central. Triste fim para as utopias de esquerda. Mas as festas continuam acontecendo. E quem pontifica, especialmente em Brasília, é um tipo especial de reformista, que se auto-atribui a qualidade de "desenvolvimentista" e com muita freqüência chamam o presidente de "Fernando".
A despeito da variedade, essas pessoas têm em comum, de um lado, uma profunda e ressentida ciumeira da chamada "área econômica", e de outro, um desprezo estomacal pelo Congresso Nacional. Sua ladainha, na verdade, é contra os limites à ação do presidente: concessões feitas "à direita" em nome da governabilidade, ou com o propósito de fazer passar as reformas, e amarras impostas pela área econômica às ações do Estado.
Trata-se, ao fim das contas, de queixumes contra a democracia e a contra a responsabilidade fiscal que, felizmente, o presidente sempre teve a sabedoria de relevar. Com raras e conhecidas exceções, esses conselheiros do presidente são discretos e sinuosos.
Durante muitos anos operaram na clandestinidade, alguns com enorme dose de malícia, fazendo guerrilha contra as alianças feitas pelo governo (desancando, neste terreno em particular, as verbas e cargos entregues a aliados, como se governos de coalizão não devessem fazer isso) e também contra o Banco Central e o Ministério da Fazenda, os centros emanadores da racionalidade econômica e disciplina fiscal.
A área econômica nunca teve uma vida fácil com alguns dos amigos do presidente. A estabilização e a abertura, alavancados pela âncora cambial, trouxeram disciplina fiscal para o governo e disciplina de mercado para o setor privado, e foi briga desde o começo. O maior problema com os homens que chamam o presidente de "Fernando" era simples: as coisas deram certo, e deram tão certo que o ministro Fernando Henrique Cardoso foi eleito e reeleito presidente no primeiro turno seguindo conselhos opostos aos deseus amigos.
Por outro lado, um segmento expressivo (ao menos no tocante a sobrenomes e reputações) das "classes produtivas" sempre se alinhou com os amigos do presidente não apenas em seu desapreço para com a moeda forte, como também em seu desprezo pelas reformas e pelo Congresso. Assalariados e consumidores, em oposição, não apenas apreciam a moeda forte, como também a apoiaram sempre que tiveram a oportunidade de votar sobre o assunto.
Enquanto isso, em função da determinação do presidente, a coalizão governista conseguia reformar a Constituição e iniciar a mudança do modelo econômico. Abertura, estabilização, privatização, todo esse complexo de novos "fundamentos" para o crescimento foi sendo consolidado e não revertido. Os homens que chamam o presidente de "Fernando" nunca estiveram satisfeitos com isso. O Brasil se transformava e em direções que lhes pareciam estranhas.
Esses homens se identificavam com um "Fernando" que não existia mais. Sentiam-se como políticos da oposição e surpreendiam-se com o pensamento do presidente. Com efeito, o presidente nunca teve problema com as suas próprias velhas idéias, que sempre soube reciclar para novos tempos e realidades. Com os seus amigos, todavia, algo diferente se passou. Muitos não saíram do lugar em matéria de idéias econômicas, mas continuam a mover-se nesse terreno com grande desenvoltura, assim criando problemas para o presidente.
É mais fácil livrar-se de uma idéia que ficou velha que de um amigo cabeça-de-vento, que vive no passado, e que não economiza maus conselhos ao presidente diretamente, e também, e com mais empenho, em festas em Brasília. As mudanças nos últimos anos geraram muitas tensões. O Brasil passou a ser uma economia de mercado globalizada e passou a viver todos os vendavais da Nova Economia.
A mudança gerou tensões proporcionais à sua profundidade, mas mesmo durante as crises da Ásia e da Rússia a aprovação popular do governo permaneceu muito elevada. É grande o poder de maiorias mudas, como consumidores e contribuintes. Numa democracia de massa são mais importantes os conceitos que os grupos de pressão. O presidente governa pela TV e não para os que estão em sua sala de espera. Mas os homens que chamam o presidente de "Fernando" aplaudiram discretamente as crises da Ásia e da Rússia como se tivessem sido previsão deles e culpa nossa.
Esses homens e mulheres murmuravam "desvalorização" pelas festas com a mesma carga emocional libertadora usada antigamente para se falar de "revolução". O problema é que a fórmula mágica da felicidade, o atalho para a prosperidade, não funcionou como planejado. E felizmente para nós, brasileiros, o governo voltou para as linhas da política econômica originais antes mesmo que os projetos "alternativos" ou"desenvolvimentistas" tivessem sequer sido abertamente assumidos pelo governo.
Ao final das contas, o desenvolvimentismo mais tacanho, que despreza o Congresso, as reformas e a responsabilidade fiscal, virou assunto de gente ressentida que bebe demais nas festas de Brasília.

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