24 novembro 2006

A ESQUERDA E O DESENVOLVIMENTISMO

(O texto que segue é do cientista político José Luís Fiori inicialmente publicado no site Carta Maior. Nos proximos textos buscarei trazer alguns apontamentos quanto a discussão econômica envolvendo os assim chamados: desenvolvimentistas)

Não é de estranhar a dificuldade atual do “desenvolvimentismo” para
recuperar audiência e fôlego teórico, e deixar de ser apenas uma trincheira de
resistência pontual, e de contenção limitada de alguns excessos ou demasias
neoliberais, dos próprios social-democratas.
José Luís Fiori

Toda reconstrução histórica é um pouco arbitrária e imprecisa. Mas feita esta ressalva, se pode afirmar que o “desenvolvimentismo” latino-americano nasceu no México, durante o governo do presidente Lázaro Cárdenas, na década de 1930. Cárdenas foi nacionalista e seu governo fez uma reforma agrária radical; estatizou a produção do petróleo; criou os primeiros bancos estatais de desenvolvimento industrial e de comercio exterior da América Latina; investiu na construção de infra-estrutura; praticou políticas de industrialização e proteção do mercado interno; criou uma legislação trabalhista e adotou uma política externa independente e antiimperialista.

Depois de Cárdenas, com pequenas variações, este programa se transformou no denominador comum de vários governos latino-americanos, que depois foram chamados de “nacional-populares” ou “nacional-desenvolvimentistas”, como foi o caso de Vargas, no Brasil, Perón, na Argentina, Velasco Ibarra, no Equador e Paz Estenssoro, na Bolívia, entre outros. Nenhum deles era socialista, nem muito menos marxista, pelo contrário, eram quase todos conservadores, mas suas idéias, políticas e posições internacionais também se transformaram na referencia obrigatória da esquerda latino-americana.

Depois de 1930, e em particular depois que os Partidos Comunistas latino-americanos adotaram uma estratégia democrática e reformista de conquista do poder e transformação do sistema capitalista, a relação da esquerda com o “desenvolvimentismo” transformou-se no núcleo duro de sua produção intelectual e política. Foi o que ocorreu em quase todos os países do continente, pelo menos entre 1930 e 1980. Não é difícil, por exemplo, encontrar a inspiração “cardenista” nos programas da revolução camponesa boliviana, de 1952 e no governo democrático de esquerda de Jacobo Arbenz, na Guatemala, entre 1951 e 1954. Como também, na primeira fase da revolução cubana, entre 1959 e 1962 e no governo militar e reformista do general Velasco Alvarado, no Peru, entre 1968 e 1975. Idem, no caso do governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973.

No Brasil, entretanto, esta relação entre a esquerda e o desenvolvimentismo, seguiu uma trajetória absolutamente original, graças a dois acontecimentos da década de 1930 que marcaram definitivamente a história do país. O primeiro, foi o desaparecimento precoce da Aliança Nacional Libertadora (ANL), a primeira grande mobilização democrática nacional e urbana, de classe média e de centro-esquerda, que ocorreu no Brasil e foi abortada e dissolvida prematuramente, depois do fracasso da rebelião militar comunista, de 1935. E o segundo, foi o golpe de estado de 1937, que inaugurou o governo autoritário do Estado Novo de Getulio Vargas e suas primeiras políticas industrializantes e trabalhistas que tiveram uma forte conotação anticomunista e anti-esquerdista.

Por isto mesmo, a esquerda brasileira só se aproximou e reconciliou com algumas teses e propostas do “desenvolvimentismo conservador” de Vargas, na década de 50 e sobretudo, durante o governo de JK. Foi quando o Partido Comunista Brasileiro (PCB) abandonou sua estratégia revolucionária, e assumiu a defesa de um projeto de “desenvolvimento nacional” que deveria ser liderado pela burguesia industrial brasileira. Teses e propostas que transcenderam as pequenas fronteiras partidárias do PCB e influenciaram fortemente toda a intelectualidade de esquerda no Brasil.

Mais à frente, no início da década de 60, esta nova esquerda “nacional-desenvolvimentista” propôs um programa de “reformas de base” que acelerassem a democratização da terra, da educação, do sistema financeiro e do sistema político, que foram incluídas, pelo menos em parte, no Plano Econômico Trienal proposto pelo Ministro do Planejamento Celso Furtado, em 1963, e abortado pelo golpe militar de 1964. É importante relembrar, entretanto, que naquele mesmo período, a estratégia “nacional-desenvolvimentista” foi duramente criticada por um outro segmento da esquerda, um grupo de intelectuais marxistas, da Universidade de São Paulo, liderados pelo professor Fernando H. Cardoso, Mas este grupo não chegou a propor nenhuma alternativa, naquele momento, ao programa das “reformas de base”, e ao Plano Trienal de Celso Furtado.

Nas décadas seguintes, a relação entre a esquerda e o desenvolvimentismo complicou-se ainda mais, depois que o regime militar, instalado em 1964, abandonou suas primeiras posições ultra-liberais e retomou o caminho do desenvolvimentismo conservador e autoritário, na década de 70, reavivando as lembranças e os velhos traumas da esquerda. Talvez por isto, quando a esquerda brasileira volta à cena política democrática, na década de 80, a maior parte de sua militância juvenil já tinha um forte viés anti-estatal, anti-nacionalista e anti-desenvolvimentista, e considerava que a organização social e a defesa dos direitos da sociedade civil - através dos “movimentos sociais” e das “organizações não governamentais” - era mais importante que a luta política pelo poder do estado.

Assim mesmo, alguns intelectuais e políticos “mais velhos” propuseram reformar, aprofundar e democratizar o desenvolvimentismo sob a égide de um “estado de bem estar social”, alcançado vitórias significativas na Constituição de 1988. Mas depois, na década de 90, foram derrotados sistematicamente, no campo das idéias e da luta pelo poder, pelos herdeiros do “marxismo paulista” dos anos 60, que combinaram num mesmo projeto, sua intolerância com o nacionalismo, o desenvolvimentismo e o populismo e sua proposta alternativa de um novo tipo de desenvolvimento “dependente e associado” com os Estados Unidos só compatível com as políticas e reformas neoliberais.

Este “pacote intelectual” nasceu em São Paulo e penetrou profundamente a intelectualidade dos dois partidos social-democratas que também nasceram naquele estado, o PSDB e o PT. Por isto, não é de estranhar a dificuldade atual do “desenvolvimentismo” para recuperar audiência e fôlego teórico, e deixar de ser apenas uma trincheira de resistência pontual, e de contenção limitada de alguns excessos ou demasias neoliberais, dos próprios social-democratas.

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